Ao lado da Bahia e do Pará, o estado do Amazonas reúne a maior população de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas somadas, de acordo com o IBGE. E esse número reflete diretamente o total de micro e pequenos empreendedores na região, que junto ao Acre representam 84% daqueles começaram o próprio negócio. Em proporção menor, mas crescente, o componente racial vem oportunizando negócios que reforçam essa representatividade, através do afroempreendedorismo.
De acordo com o ‘Atlas dos Pequenos Negócios’, produzido pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e divulgado em julho, a maior proporção de empreendedores negros nos dois estados do Norte foi apontada como principal peculiaridade da região. Entre 8,7 milhões de Micro Empreendedores Individuais (MEIs) em atividade no Brasil, 54% são negros.
Mesmo representando a maioria no país ou quase a totalidade na região, essa população ainda luta contra estigmas. Em um panorama do empreendedorismo produzido pelo Sebrae em 2021, verificou-se que os empreendedores negros foram os mais prejudicados com a crise da pandemia da Covid-19 e tiveram recuperação mais modesta. Além disso, brancos recebem cerca de R$ 2.587 reais ao mês, enquanto negros alcançam R$ 1.714. Uma diferença de 33%.
Já a pesquisa ‘Afroempreendedorismo Brasil’, realizada pelo Movimento Black Money em parceria com Inventivos e RD Station, mostrou que o afroempreendedorismo é solitário. Isso porque 63,2% dos entrevistados de todo o país contavam apenas com sua própria mão de obra para empreender e apenas 1,3% possuía de 10 até 50 colaboradores.
Embora a passos lentos, esse segmento tem se mostrado uma oportunidade. A mesma pesquisa sinaliza ainda as movimentações do ramo em mais de R$ 1 trilhão ao ano, com destaques para as áreas de maior incidência de novos negócios, como estética, comércio e comunicação.
Lacuna
Fernanda Paula Fernandes, 32, é uma pedagoga manauara e deu o primeiro passo no empreendedorismo com a criação da Melanina AM (@melanina.am) em 2018, diante da dificuldade em conseguir emprego.
A empresária que sequer se imaginava um dia no ramo empreendedor, se viu motivada em começar seu pequeno negócio também para ser pioneira no mercado com o primeiro empreendimento voltado para a estética negra no Amazonas. “Eu já tinha prestado atenção que outras amigas minhas possuíam o mesmo problema ao procurar por produtos de beleza. Era uma base, um batom, uma sombra que ficasse legal na gente e também quando procurávamos os acessórios afros, existia essa falha no mercado aqui do Amazonas”, constatou Fernanda.
Fernanda conta que a construção do empreendimento foi um movimento ousado por se tratar do comércio para um público específico, mas a iniciativa garantiu para a pedagoga notoriedade e hoje, a Melanina AM consegue vender, mensalmente, cerca de 20 a 30 produtos com clientes fixos.
Dos itens mais comprados estão os géis para definição de cachos e as famosas toucas de cetim, indicadas para os cuidados dos fios crespos e cacheados. A Melanina AM dispõe, ainda, de produtos específicos para a pele preta, como as bases da marca ‘Negra Rosa’, especializada em tons que vão de dark a dark 6 para dermes mais retintas.
O empoderamento estético e cultural moldou a iniciativa de Fernanda, que busca ser referência para a identidade negra e valorização da cor no Amazonas. “Além de vender, eu quero empoderar mulheres e homens pretos com a realidade que podemos nos cuidar, podemos consumir e quebrar estigmas culturais. O afroempreendedorismo só tende a crescer se a comunidade continuar acreditando na força dessas iniciativas. Eu não quero desistir agora, quero crescer e levar mais pessoas comigo”, ressaltou Fernanda.
Identidade
José de Souza Lima, 34, nasceu em Novo Airão e é filho de um comerciante. Na infância, as influências empreendedoras deram os primeiros indícios com o costume de vender jambos para comprar sorvete junto aos amigos. No mesmo período com sua avó, José aprendeu a cozinhar utilizando ingredientes do cotidiano ribeirinho. Peixes, ervas e verduras da própria horta construíram sua base para o futuro.
Quando chegou na capital amazonense em 2006, José começou a empreender com uma banquinha de churrasco, seguindo posteriormente para a venda de peixes. 10 anos depois sua trajetória com a culinária chegou a um novo patamar com a criação de sua marca “Coisas de José Gastronomia Criativa” (@coisa_de_jose_gastro_criativa).
A marca potencializou o desenvolvimento de inúmeros projetos e iniciativas na carreira de José em empreendimentos do setor alimentício como “Rodada da Caipirinha”, “Feijoarte” e os “Temperados de Joli”. O novo-airãoense possui como destaque em seu trabalho, a fusion food (cozinha de fusão), uma combinação de elementos culinários de diferentes regiões para criação de novos pratos.
A ideia envolve os ingredientes característicos da Amazônia e que estão na refeição do ribeirinho dia após dia. Peixes, feijão de praia, tucupi, banana pacovã e tucumã são alguns dos itens que compõem a criatividade de José e transformam seus pratos em representatividade negra e amazônica.
Além disso, a arte em culinária regional proporcionou ao empresário conquistas como o Prêmio Enchef Amazonas, condecorando-o como um dos maiores profissionais da gastronomia no estado e foi finalista ao Prêmio Dolmã Amapá 2022.
Hoje, formado em Gastronomia e pós-graduando em Tecnologia de Alimentos, o chefe de cozinha José de Souza acredita que uma de suas maiores dificuldades na trajetória empreendedora ainda seja o racismo. Porém, luta para combater o preconceito valorizando a identidade negra e ribeirinha em suas criações como resistência.
“Eu trabalho com gastronomia criativa para trazer em evidência o que é nosso. Um exemplo é como fazemos a Lagosta à Provençal. Aqui não temos lagosta, mas temos o bodó. Então fazemos Bodó à Provençal. E a ideia é essa, regionalizar o que temos em mãos para valorizar nossa cultura e resistir diante do preconceito”, enfatizou José.